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Dossiê: Conexões e redes da Fundação Rockefeller na América Latina
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Resenhas
“Topologia do não-lugar”: colonialidade e desontologização dos racializados a partir de Nelson Maldonado-Torres
Resenha do livro: CABRAL, Alexandre Marques. Topologias do não-ser:. discutindo (sub) ontologia e colonialidade com Nelson Maldonado-Torres. Rio de Janeiro: Via Verita, 2023. 71
Uma história crítica da “pós-filosofia da história” do Collegium Philosophicum
Resenha do livro: Coves, Faustino Oncina; Partal, Juan de Dios Bares (ed.). La escuela histórico-conceptual de Joachim Ritter y el protagonismo so- ciocultural de la filosofía. Granada: Comares, 2022.
Delírio americano: um ensaio sobre a história cultural e política da América Latina
Resenha do livro: Granés, Carlos. Delirio americano. Una historia cultural y politica de América Latina. Barcelona: Taurus, 2022. 593 p.
Na dobra do tempo: escrita indígena e demarcação do racismo e do negacionismo no campo da História
Resenha do livro: ZELIC, Marcelo; ZEMA, Ana Catarina; MOREIRA, Elaine. Genocídio indígena e políticas integracionistas:. demarcando a escrita no campo da memória. São Paulo: Instituto de Políticas Relacionais, 2021. 172.
Voz ativa, voz passiva, voz narrada: a diáspora dos courás no escravismo atlântico
Resenha do livro: MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. De reino traficante a povo traficado: a diáspora dos courás do golfo do Benim para Minas Gerais (América Portuguesa, 1715-1760). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2022. 304 p.
A fábula sobre Mao Tsé-Tung e a historiografia brasileira
Resenha de: CALLADO, Ana Arruda. Maria Yedda, formadora de gente. Rio de Janeiro: Betel, 2022. 230 p.
Prisioneiros, prisões e violência política: fundamentos e estratégias para um diálogo historiográfico
Resenha de: GALEANO, Diego; CORRÊA, Larissa Rosa; PIRES, Thula. De presos políticos a presos comuns. Estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. 316.
Artigos
Racismo e estética: uma introdução
Introdução ao Dossiê Racismo e Estética.
A abolição revista por Zózimo Bulbul no cinema: aspectos da resistência negra entre a arte e a história
Neste artigo, dirige-se uma crítica a determinados relatos constituintes do documentário Abolição (1988), de Zózimo Bulbul, que discorrem sobre as revoltas no período escravocrata, a abolição e o posicionamento do Estado após a emancipação, a fim de enfatizar suas dimensões históricas e políticas. Para tanto, tais depoimentos, majoritariamente de pesquisadores/as e militantes negros/as, foram cotejados com as perspectivas enunciadas no campo da História, da Antropologia e da Filosofia por Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Ynaê dos Santos, Kabengele Munanga e Molefi Kete Asante. Nessa obra, o/a negro/a apresenta-se como enunciador/a da própria história ao denunciar as injustiças acerca da barbárie escravocrata e racista, ao mesmo tempo em que reivindica equidade em sociedade. A narrativa áudio-imagética se alinha à certa historiografia erigida sobre a população negra do Brasil.
Nascer negro não é ter defeito: festivais da canção, inter-racialidade e racismo
Reconhecidos pela multiplicidade e pluralismo, os festivais da canção das décadas de 1960 e 1970 refletiam a sociedade brasileira em seus âmbitos musical, regional, social e também racial, sendo marcadamente diversificados e com diferentes representatividades étnico-raciais. Isso, no entanto, não impediu que ocorressem episódios de racismo e discriminação, seja através de blagues, chamamentos, utilização de determinados termos ou mesmo perseguição pela atuação em benefício da luta antirracista. Desse modo, o artigo, por meio de revisão bibliográfica e análise de jornais e periódicos, procura evidenciar esses vieses dos festivais, sendo prioritariamente diversos e interraciais, mas, ao mesmo tempo, sediando acontecimentos em que há segregação e racismo e, também nestes aspectos, espelhando a sociedade de um modo geral.
Favelas e as pós-vidas da cidade escrava
Este artigo examina as representações visuais da urbanidade negra do século XIX ao início do século XX. Considera-se como a urbanidade negra foi vivida, imaginada e visualizada nas cidades do século XIX, enfocando a tensa interdependência entre a cidade escrava (a cidade estruturada pela prática da escravidão) e a cidade negra (a cidade criada por e para os negros). Em seguida, analisa como os fotógrafos municipais representaram as favelas e os mocambos do século XX por meio dos regimes visuais da cidade escrava. Conclui-se que, a despeito de tais representações, o urbanismo informal constituiu sua própria prática visual, permitindo que os afrodescendentes inscrevessem a cidade negra de forma definitiva na tela urbana.
Marca registrada: a construção da autorrepresentação de d. Obá II d’África no contexto do abolicionismo no Brasil (1878-1890)
O presente artigo tem como foco a análise da imagética construída entorno da figura de d. Obá II através da imprensa do Rio de Janeiro ao longo da década de 1880, momento de radicalização das relações raciais no Brasil. A partir de uma história das imagens, evidencia o racismo nas charges de que d. Obá é alvo, ao mesmo tempo em que demonstra sua agência na construção da autorrepresentação como ferramenta de luta no contexto da campanha abolicionista no país. Constata, por fim, o pioneirismo de d. Obá no uso da fotografia e das novas tecnologias de reprodução de imagens como instrumento capaz de projetar uma visão positiva da identidade social negra na luta por igualdade e direitos civis.
Descolonizar Foucault? Por uma história da violência racial e de gênero das máscaras de punição?
O texto trata das máscaras punitivas, referidas pela escritora Grada Kilomba como símbolo da opressão contra mulheres negras. Interroga como as máscaras foram utilizadas na economia punitiva, na gestão da dor, nas técnicas de controle social, etc. Propõe compreender como a história desse objeto se imbrica nos esquemas históricos sobre controle social utilizados na criminologia. Argumenta que olhar para as máscaras punitivas permite descolonizar os esquemas de compreensão e considerar as dimensões representacionais e performativas do controle social moderno. O diálogo é com Michel Foucault, em Vigiar e punir, sobre quando a máscara surge na sua história e por que ela foi considerada (in)significante. Se Michel Foucault tivesse tratado sobre a máscara, ela faria parte de sua história do espetáculo da dor ou do poder disciplinar? Como duas de suas referências centrais (George Rusche e Otto Kirchheimer, e Jeremy Bentham) retrataram esses objetos?
Santo podestà: heresia, martírio político e devoção cívica na cidade medieval italiana de Orvieto
Este artigo trata das relações entre heresias, governos citadinos e fabricação de santidades na Itália medieval. O trabalho se debruça sobre um estudo de caso: o culto ao mártir Pietro Parenzo (ca. 1199), primeiro podestà da cidade comunal de Orvieto. Suas fontes são a passio escrita para o mártir, por volta de 1200, por um cônego local; alguns diplomas reunidos no arquivo episcopal da cidade; e um ciclo de narrativas pictóricas tardias feitas em sua honra, na catedral da cidade, nos séculos XV-XVII. A problemática que o texto enfrenta é: como os poderes locais – tanto os laicos quanto os eclesiásticos – atuaram para combater a heresia na cidade? Diante de tal pergunta, o objetivo do trabalho é analisar a trajetória política de Parenzo, formulando a hipótese de que a reorganização da Comuna de Orvieto e a fundação institucional do podestà poderiam ter servido, em primeiro lugar, para sufocar os movimentos heréticos.
A quem pertence Ramon Llull? Considerações para descolonizar e globalizar uma experiência medieval
O presente artigo é composto por duas partes principais. A primeira delas apresenta como um pensador medieval, o maiorquino Ramon Llull (c. 1232-1316), foi nacionalizado e europeizado nos últimos séculos. A segunda demonstra a importância de descolonizar e globalizar o entendimento sobre esse filósofo, com o objetivo de situá-lo mais adequadamente em seu contexto “global”. Nossa intenção é incentivar a reflexão crítica sobre o período medieval e, assim, propor uma releitura de um personagem histórico específico. Pretendemos demonstrar como pesquisadores e professores de História podem trabalhar com a Idade Média de forma descolonizada e globalizada. Para esse propósito, utilizaremos alguns fundamentos teórico-metodológicos da História Global e da teoria pós-colonial.
A Bahia e a Casa das Rainhas de Portugal: exploração metropolitana e capital simbólico
Inserida no contexto do Império Marítimo português, a Bahia foi um dos diversos espaços coloniais a se constituírem como fornecedora de bens e riquezas à Casa das Rainhas de Portugal, cuja cobrança e fiscalização era exercida por procuradores. Este artigo acompanha a troca de documentos entre Bahia e Lisboa que retratam a dinâmica contábil da cobrança dos bens pertencentes à Casa das Rainhas de Portugal no século XVIII, disponibilizados no Arquivo Histórico Ultramarino. Para tanto, usamos como referência o período em que o ofício de procurador foi exercido por dois membros da família Pires de Carvalho e Albuquerque. Através de uma análise amparada na economia da mercê, conclui-se que o pertencimento a uma estrutura de poder régio como a Casa das Rainhas permitia a alguns indivíduos espelharem na colônia elementos da lógica nobiliárquica reinol.
O problema do riso: o primeiro pátio de comédias de Lisboa diante do período filipino e da Restauração Portuguesa (1588-1669)
Construído em 1588 como um autêntico teatro comercial do Siglo de Oro e em consequên-cia de um alvará de Filipe II, a trajetória do Pátio das Arcas, o primeiro teatro regular de Lisboa, explica-se a partir dos marcos que definem a vida política portuguesa a partir de 1580. Com base nos registros de receita do Pátio e de fontes que documentam algumas reações à presença de um teatro visto como espanhol, este artigo interroga o funcionamento do Pátio das Arcas desde o seu contexto de abertura até a Restauração Portuguesa, a fim de aferir sua interferência no cotidiano de uma cidade que atravessava contingências políticas e culturais que fazem dele um símbolo ainda bastante ignorado do período filipino. Ao fim, demonstra-se como as repercussões da atividade teatral do Siglo de Oro, em Portugal, atestam uma relação direta entre o funcionamento do Pátio das Arcas e os acontecimentos maiores da vida política lusa entre 1580 e 1668.
A presença das plantas na modernização da paisagem urbana carioca (1875-1922)
A flora tropical brasileira influenciou a identidade nacional e a estética urbana. Na capital do país, as transformações urbanas na virada para o século XX foram acompanhadas pelo controle da vegetação para promover a modernização. De uma cidade colonial pouco arborizada à capital republicana denominada “Cidade Maravilhosa”, analisamos as pinturas de paisagem e fotografias da cidade do Rio de Janeiro para compreendermos como as plantas estavam presentes no discurso civilizatório na estética da tropicalidade brasileira e na narrativa de modernização urbana. Dessa maneira, este artigo analisa o processo social de domesticação da flora na paisagem urbana e seu papel na modernização da paisagem urbana carioca, desde meados do século XIX até o primeiro centenário da Independência Nacional.
Assistência social, trabalho e anticomunismo na Guerra Fria: o feminismo “conservador” de Theresita Porto da Silveira (1939-1971)
Theresita Porto da Silveira foi diretora da Escola Técnica de Serviço Social do Rio de Janeiro (1938-1967) e jornalista, tendo participado de eventos no exterior e dialogado com diversos quadros do Estado brasileiro. Em 1946, criou um Comitê Nacional da Liga Internacional de Mulheres Pró-Paz e Liberdade (LIMPL), organização feminista transnacional com sede em Genebra. Theresita se dizia feminista, e, de fato, contribuiu para ampliar os espaços de atuação da mulher, mas, ao mesmo tempo, sua perspectiva era bastante conservadora: alegava que a mulher era responsável pelo lar, era anticomunista e defendia a moral cristã como norma. A partir de suas cartas trocadas com a LIMPL e de seus textos publicados em jornais, foi possível empreender um estudo biográfico que busca apresentar limites e possibilidades de atuação de uma mulher branca de classe média alta naquele contexto e como esses pertencimentos moldaram sua militância feminista.
Análise das cartas de Julio Bressane publicadas nos programas da Cinemateca do MAM Rio (1970-1971)
Este trabalho propõe investigar um par de cartas escritas pelo cineasta Julio Bressane e publicadas nos programas da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre novembro de 1970 e janeiro de 1971, como parte da mostra Novos rumos do cinema brasileiro. Nelas, o diretor marca um posicionamento de ruptura contra o Cinema Novo, elaborando críticas ao processo de industrialização encampado pelo grupo. Faz também defesa da Belair, produtora underground criada por ele em parceria com Rogério Sganzerla e Helena Ignez, e elenca algumas influências do período, divergindo entre a inspiração oswaldiana e a militância política a partir de Leon Trotski. Parte-se da hipótese de que esses textos, redigidos por Bressane quando ele já residia em Londres, documentam com precisão as intenções que nortearam o surgimento e o encerramento da Belair.
“Este ponto considerado militarmente é importantíssimo”: a proteção da província de Santa Catarina durante a independência do Brasil (1822-1824)
Este estudo analisa o contexto militar e as características bélicas da província meridional de Santa Catarina entre os anos de 1822 e 1824, ou seja, durante o período final de desagregação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Objetiva-se compreender como as autoridades orquestraram a defesa de uma província que estava no caminho para o Prata, mas que recebia influências de fatos ocorridos em outras partes do nascente Império brasileiro. Assim, por um enfoque militar, o artigo partilha premissas de um recorte político e de noções básicas de um território nacional. Como fontes, são consultados documentos escritos pelos sujeitos responsáveis por organizar essa defesa em nível provincial, salvaguardados no Arquivo Nacional (RJ), no Arquivo Histórico do Exército (RJ) e no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC).
O correspondente de guerra e a Segunda Guerra Mundial: da apuração à elaboração da notícia (1934-1941)
O artigo examina elementos do trabalho do correspondente internacional/de guerra (jornal impresso e radiofusão) previamente e no início da Segunda Guerra Mundial (1934-1940). Discute como o fazer do jornalismo durante o conflito era atravessado por mediações distintas, incidindo sobre a notícia. Entre elas, informações de segunda mão, censura, interesses do país de origem, do país receptor do profissional e da empresa jornalística para a qual o correspondente trabalhava. A análise se desenvolve a partir dos aportes que discutem a objetividade da imprensa e o universo das viagens e viajantes. Para tal, foi utilizado como fonte o livro do correspondente norte-americano em Berlim, William Shirer, intitulado Berlin Diary, The Journal of a Foreign Correspondent, publicado em 1941.
Mulheres e o mundo dos Annales
Tradução e notas de Crislayne Gloss Marão Alfagali.
White Dreams for Black Deeds: Cinema, Epic, and Racial Hierarchy during the First Republic
This article analyzes the connection between the narrative elements and commercial success of the film Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Italy, 1913), the media coverage surrounding the Revolt of the Lash, the construction of common sense for the public regarding these events and, more generally, the recent past of slavery and the role of Afro-Brazilian citizens in the claiming of rights during the immediate post-Abolition period. In regard to a racially oriented reading of the film, this article argues that the consumption of Spartaco by Brazilian spectators worked to erase Black references of heroism and rebellion from events close in time to the exhibition of the film and connected to the legacy of slavery – the Revolt of the Lash and the trial of João Cândido. Concerning the methodology for analyzing written sources, this article adopts the evidential paradigm, as advocated by Carlo Ginzburg.
Sonhos brancos para feitos negros: cinema, épico e hierarquização racial durante a Primeira República
Este artigo pretende analisar a conexão entre os elementos narrativos, o sucesso comercial alcançado pelo filme Spartaco (Giovanni Enrico Vidali, Pasquale Film, Itália, 1913), a cobertura midiática da Revolta da Chibata, o enquadramento de um senso comum por parte do público quanto a esses eventos e, de modo mais geral, quanto ao passado recente da escravidão e ao papel da população afro-brasileira na conquista de direitos no momento imediato pós-Abolição. Em se tratando de uma leitura racialmente dirigida à obra, nosso argumento principal é o de que o consumo de Spartaco por parte dos espectadores brasileiros atuou no apagamento do referente negro de heroísmo e de rebelião a partir de episódios temporalmente muito próximos à exibição do filme – a Revolta da Chibata e o julgamento de João Cândido – e conectados à herança do período escravocrata. Como metodologia para análise das fontes escritas, adotamos o paradigma indiciário, tal como preconizado por Carlo Ginzburg (2007).
O lusotropicalismo em confronto com a intelectualidade afrodiaspórica: o caso de Angola
É objetivo deste artigo apresentar as tensões existentes entre a percepção do lusotropicalismo endossada pelo salazarismo e a análise dos intelectuais dos territórios portugueses em África, destacadamente os angolanos. Gilberto Freyre ofereceu suporte retórico para a construção da nova visão do “mundo que o português criou”, partindo de Portugal como território formado por várias etnias e em múltiplos continentes, corroborando a estética proposta pelo salazarismo pós-Segunda Guerra Mundial. Todavia, tal interpretação contrastava com a realidade percebida pelos intelectuais angolanos. Analisaremos, assim, as obras de Gilberto Freyre e as respostas de autores angolanos em relação ao tratamento dado pelo Estado Novo português às “províncias ultramarinas”.
A literatura ilegítima da Shoah: Ka-Tzetnik e as Stalag Fiction
A recepção dos sobreviventes da Shoah e de suas memórias em Israel passou por um primeiro e relativamente longo momento de desconfiança e silenciamento. A oposição entre o judeu da Diáspora, visto como passivo diante das agressões nazistas, e o novo judeu, como ideal sionista, fez com que, marcadamente até o julgamento de Eichmann, as histórias particulares de humilhação e sofrimento não encontrassem espaço nessa sociedade em formação. O problema ao qual este artigo busca responder é como e por que formas específicas de representação do Holocausto, definidas aqui como uma literatura ilegítima, nomeadamente as publicações de Ka-Tzetnik e as chamadas Stalags, ganharam espaço em Israel até o julgamento de Eichmann. Para isso, uma análise dessa literatura e uma revisão bibliográfica serão realizadas a fim de mostrar a união perturbadora entre Holocausto e pornografia como a maneira encontrada por uma geração para lidar com memórias de sofrimento até então latentes em espaços públicos e privados.
História e favelas cariocas: um encontro tardio
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a construção das favelas como objeto de pesquisa histórica. Se outras disciplinas das Ciências Sociais compreenderam a importância de usar a história como ferramenta metodológica para estudar a realidade desses espaços, ao menos desde os anos 1940, o presente estudo analisa as razões e implicações da História ter tardado em fazer das favelas um objeto mais sistemático de estudo. Analisamos, assim, que a renovação do debate historiográfico no Brasil, com a busca de novas fontes, tais como acervos documentais constituídos por instituições nas próprias favelas, e métodos, como os fornecidos pela História Oral, vêm dando mais densidade ao debate histórico sobre esses espaços, inclusive com a produção de trabalhos realizados por seus próprios moradores nos últimos anos. Ao levantar os trabalhos históricos sobre as favelas, pretendemos identificar as consequências epistemológicas dessa produção tanto para os estudos urbanos quanto para a própria História como campo disciplinar.
Os imigrantes de Martin Eden. Classe, nacionalidade e experiência na literatura de Jack London
A proposta deste artigo é discutir como dizer “imigrante” é não dizer tudo, e como é preciso levar em conta o lugar socioeconômico para entender o significado da imigração. Para tal, analisam-se diferentes imigrantes presentes no romance Martin Eden (1907-1909), de autoria de Jack London, através da fusão dialética de texto e contexto, conforme formulada por Antonio Candido. O romance tem uma série de personagens secundários que podem ser identificados como imigrantes e/ou que têm sua nacionalidade não americana sublinhada. O argumento central é o de que a condição de imigrante nos Estados Unidos da virada do século XIX foi influenciada pelas tensões de classe que se intensificavam, bem como pelas disputas político-filosóficas travadas ao longo do processo de fragilização da ideologia liberal, resultado histórico da consolidação do regime monopolista.
A soberba e os letrados portugueses do século XVIII
O artigo investiga as mudanças no campo semântico da palavra “soberba” nas letras portuguesas do século XVIII. Inicialmente, apresento a palavra como conceito religioso presente nas obras de clérigos que publicaram em português na primeira metade do século. Soberba definia o pecado do “anjo mau” que rompeu com a autoridade divina. Na segunda parte, analiso como esse significado religioso foi tratado na produção lexográfica portuguesa ao longo século. Por último, averiguo a presença do termo nos textos que orientaram as reformas educacionais em Portugal, nos quais é possível observar a secularização de seu significado. Porém, o sentido do termo não se alterou completamente: os reformadores se apropriaram da rede de sentidos religiosa tradicional, mas alteraram algumas de suas acepções.
“Sr. Critico” José Veríssimo (1857-1916): a metonímia e a fortuna crítica (1916-1974)
Realiza-se neste trabalho a análise do lugar assumido pela obra de José Veríssimo no pensamento brasileiro enquanto representante da crítica e história literária produzida no final do século XIX e início do XX, por meio de diferentes leituras sobre sua vida, obra e personalidade. Por contraste, são abordadas as apreciações realizadas por essas leituras a respeito da sua atuação educacional e estudos sobre Amazônia. Com uma abordagem teórica da história e crítica literária, o artigo examina a trajetória da fortuna crítica que escrutinou a produção intelectual de José Veríssimo no transcorrer do século XX, dos folhetins de jornais à tese universitária. Desse conjunto de leituras emergiu, de uma trajetória intelectual marcada pela diversidade de temáticas, enciclopédica em abordagens e erudita em conhecimentos, a imagem do “Sr. Critico”: uma metonímia que destacou o crítico/historiador literário em detrimento do polígrafo intelectual oitocentista.
A “Inscrição do Harém” de Xerxes (XPf): introdução crítica, tradução de XPf/OP para o português, comparação com XPf/AB e comentários
Introdução No âmbito da expedição do Oriental Institute of Chicago em Persépolis, liderada por Ernst Herzfeld, foi descoberta, em 3 de novembro de 1931, uma inscrição em persa antigo, gravada em uma pedra de dimensões 52x58x11 cm, sob os muros da fundação do Palácio Sudeste (o chamado “harém” de Xerxes; ver discussão abaixo) (MOUSAVI, 2020, p. 74). A descoberta se deu a partir da sugestão do arquiteto da expedição, Friedrich Kefter, de renovar uma parte da antiga fundação da estrutura. Mais tarde, em 26 de junho de 1935, a expedição, então liderada por Eric Schmidt, encontrou mais quatro cópias de XPf, três em persa antigo (XPf/OP) e outra em acadiano babilônico (XPf/AB), acompanhadas de algumas cópias da famosa “inscrição dos Daivā” de Xerxes (XPh) (ABDI, 2006-2007, p. 46; HUAYNA ÁVILA, 2020, p. 121; MOUSAVI, 2020, p. 78). Supõe-se que tenha existido uma versão elamita de XPf (*XPf/AE), mas ela não foi recuperada. Curiosamente, as últimas cópias da inscrição a serem descobertas estavam fora de seu contexto de origem, na Sala 16 dos “Aposentos da Guarnição” (Cf. SCHMIDT, 1939; SCHMIDT, 1953, fig. 82 e pl. 20A). O motivo de textos fundacionais tão importantes terem sido encontrados fora de seu contexto original, bem como a razão de seu reúso profano, não foram devidamente explicados até os dias de hoje (MOUSAVI, 2020, p. 78). [...]
La flexibilización laboral en Europa. La construcción del canon de un concepto
Este artículo examina el desarrollo histórico del concepto de flexibilización laboral en Europa occidental, especialmente durante las décadas de 1970 y 1980. A través de la revisión y análisis de investigaciones sobre la flexibilización laboral y sus implicaciones, nuestro objetivo es enriquecer la comprensión histórica de las transformaciones en el mundo del trabajo. Desde la década de 1970, la crisis de los sistemas laborales en Occidente desafió los modelos de protección al trabajador y la seguridad social. Las disparidades existentes entre los países europeos en lo que respecta a la flexibilización laboral y sus múltiples repercusiones en el ámbito social pueden atribuirse a diversos factores, tales como la influencia de los sindicatos, las regulaciones laborales y las políticas gubernamentales. Explorar la evolución histórica de la flexibilización laboral como concepto es esencial para entender cómo ha llegado a convertirse en un marco conceptual que guía las reformas y cambios en el ámbito laboral.
O associativismo civil e a emergência histórica do esporte moderno: um diálogo com Stefan Szymanski
O objetivo deste ensaio é analisar o papel do associativismo civil enquanto uma variável estruturante para compreendermos o desenvolvimento do esporte moderno, principalmente a partir do diálogo com a teoria de Stefan Szymanski. O intuito é provocar um debate em torno das causalidades hegemonicamente utilizadas no campo da história do esporte, que buscam explicar a emergência histórica do fenômeno esportivo. Alguns exemplos do contexto brasileiro são mobilizados para evidenciar o papel do associativismo enquanto um elemento determinante neste processo. Concluímos que, apesar dos evidentes impactos dos produtos da modernidade no desenvolvimento histórico dos esportes, o associativismo civil pode se configurar como uma importante chave interpretativa para compreendermos como se deu o surgimento de diversas manifestações esportivas em todo o território nacional.
A fazenda Volkswagen: responsabilidade empresarial de um projeto custeado por recursos públicos e que usou trabalho escravo na Amazônia durante a ditadura (1973-1986)
O artigo pretende analisar a experiência da fazenda Volkswagen (1973-1986), uma iniciativa de uma grande propriedade rural estabelecida no Sudeste do Pará durante a ditadura para criação extensiva de gado bovino. Para tratar do projeto, utilizamos documentos recentemente disponibilizados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudani) acerca do empreendimento. Para analisar o episódio, dialogamos com a bibliografia que trata da responsabilidade empresarial pelas violações cometidas durante as ditaduras sul-americanas, destacadamente os trabalhos de Ricardo Rezende Figueira, José de Souza Martins, Benjamin Buclet, Antoine Acker e Juan Pablo Bohoslavsky. A partir da análise da documentação da Sudam, verificamos que há comprovação de elevada devastação ambiental, contratação de agentes que empregavam trabalho escravo e farta injeção de recursos públicos na fazenda, fazendo o projeto representativo do processo de modernização truculenta do capitalismo brasileiro durante a ditadura.
“O caminho que através dos séculos seguiu à civilização”: frei Camillo de Monserrate e o ensino de Geografia Antiga no Colégio Pedro II (1850-1854)
Criado no dia 2 de dezembro de 1837, o Imperial Colégio Pedro II foi a mais importante instituição de ensino secundário do Brasil oitocentista. A instituição formou parte da elite letrada imperial e o seu currículo expressava a proeminência de um projeto de invenção da identidade nacional pautado na noção de civilização e amparada pela ênfase no mundo antigo. Nesse sentido, este artigo tem como escopo o ensino de Geografia Antiga pensado pelo professor frei Camillo Monserrate na instituição entre 1850 e 1854. Para isso, mobilizo os programas das disciplinas e anotações produzidas pelo docente, com o intuito de compreender as finalidades atribuídas aos usos da Antiguidade no currículo do ensino secundário na edificação de um ideal de civilização e as inquietações acerca da construção do equilíbrio de conteúdos entre a Europa e a América.
O concurso de Selecta: música e guerra na sociedade brasileira durante a Primeira Guerra Mundial (1915-1919)
O presente artigo tem como objetivo analisar a produção e circulação de canções de marcha ou de guerra no Brasil durante a Primeira Guerra Mundial e imediato pós-guerra (1914-1919), utilizando como fonte a imprensa nacional. Primeiramente, propomos um pequeno debate sobre canções de marcha ou de guerra a partir da historiografia mais recente sobre a Primeira Guerra Mundial, baseada nos conceitos de cultura de guerra e propaganda, porém, com foco em estudos acerca das relações entre música e guerra. Na ausência de uma produção brasileira sobre o tema no âmbito da Primeira Guerra Mundial, procuramos agregar ao debate alguns estudos brasileiros sobre o tema das canções de marcha ou de guerra. Em seguida, analisamos o debate em torno do concurso de canções de marcha organizado pela revista carioca Selecta, lançada em meados de 1915 pelo grupo Fon-Fon! Por fim, complementamos nossa análise com a inclusão de três canções de marcha produzidas por grandes nomes da música e literatura brasileira que foram divulgadas na imprensa carioca.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945): uma relação de proximidade
Neste artigo, abordamos as relações estabelecidas entre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), sobretudo a partir do título de Presidente Honorário da instituição concedido ao chefe de Estado. Além do chefe do regime, diversos membros do primeiro escalão do seu governo frequentaram e ingressaram no quadro de sócios da instituição durante esse período; por outro lado, membros do IHGB ocuparam importantes cargos no governo, configurando redes de sociabilidades entre esses indivíduos. Dessa forma, concluímos que Getúlio Vargas, ao prestigiar o IHGB – uma instituição centenária e de prestígio – era por ele prestigiado e, sobretudo, legitimado politicamente. Este artigo tem como referencial teórico a História Cultural que aborda as relações entre os intelectuais e o poder. A principal fonte utilizada é a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), o periódico oficial da instituição, que registrou tanto a sua produção intelectual quanto as atividades internas.
Da Rocinha ao bairro operário: processo de ocupação e formação do espaço nas três primeiras décadas do século XX
O objetivo deste artigo consiste em investigar a formação do espaço que conhecemos hoje como a favela da Rocinha, a partir da interseção entre a História Social e a História Urbana, buscando compreender o processo através das experiências dos sujeitos que optaram por ocupá-lo, em meio às dinâmicas de transformação da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Diferentemente dos estudos que atribuíram ao loteamento da fazenda da Rocinha realizado pela Companhia Castro Guidão na década de 1920 o marco desse processo, busca-se demonstrar, por meio da análise de jornais, documentos oficiais e fotos, que a sua possibilidade de efetivação era parte da ocupação anterior de uma diversificada força de trabalho na área. Em contrapartida, ao viabilizar o acesso à moradia para tais indivíduos, o empreendimento proporcionou uma acelerada ocupação e aglomeração de habitações modestas naquele espaço. Como resultado, a localidade começou a ser conhecida como Rocinha, consolidando assim o seu processo de invenção social e histórica como um bairro operário no início da década de 1930.
Entre “tradições” e “modernidades”: agrupamentos carnavalescos de Luanda na primeira metade do século XX
Este artigo é resultado de uma investigação, baseada em fontes jornalísticas, sobre os desfiles dos agrupamentos carnavalescos de Luanda na primeira metade do século XX. De um lado, são analisadas as representações dos jornalistas sobre os cortejos. De outro, são discutidas as maneiras pelas quais seus componentes escolheram se apresentar. Articulando esses dois objetivos, pretende-se discutir a problemática dos hibridismos culturais, demonstrando, sob inspiração de Néstor Canclini, Serge Gruzinski e Homi Bhabha, a insuficiência de oposições binárias, como colonizador e colonizado, moderno e tradicional, para a compreensão da sociedade colonial. Problematizando a simplificação de universos sociais heterogêneos em cada um dos referidos polos, e considerando a centralidade do racismo como elemento definidor de possibilidades, pretende-se demonstrar que as categorias jurídicas de indígena, europeu e assimilado não permitem uma compreensão adequada das múltiplas experiências dos indivíduos e grupos presentes na cidade.
O negócio das migrações: empresários, agentes e colonização no Brasil do século XIX
No século XIX, o Império do Brasil implementou políticas de imigração para atrair famílias camponesas europeias visando à colonização de terras consideradas devolutas. Com o objetivo de diversificar a produção agrícola e promover o “branqueamento” da nação, foram estabelecidos contratos com empresários para a criação de colônias públicas e privadas. Nesse contexto, analisaremos as ações do franco-italiano Sabino Tripoti em seu projeto colonizador na província do Paraná, utilizando o seu livro de memórias, escrito em 1877, em confronto a outras fontes, como jornais, relatórios e documentos diplomáticos. Por meio do estudo da trajetória de Tripoti, investigaremos os diferentes atores envolvidos no movimento migratório, as dinâmicas daqueles que viabilizaram a vinda de famílias italianas, bem como as críticas dos que se opunham a esse processo. O sucesso ou o fracasso das colônias destinadas aos italianos no Brasil dependeram de fatores que passavam pelas políticas mutáveis adotadas pelo Império, que incentivou a concorrência entre as colônias públicas e privadas.
Os chineses na paisagem carioca através do olhar dos viajantes e dos cronistas
O artigo explora a contribuição de viajantes estrangeiros, como Johan Baptiste Von Spix, Karl Friedrich Philipp von Martius, Johann Rugendas, Maria Graham, John Luccock, Ernest Ebel, Carlos Taunay e literatos como Machado de Assis e João do Rio, na formação de um imaginário sobre os chineses no Rio de Janeiro ao longo dos Oitocentos e no alvorecer do século XX. Além de abordar os relatos de viagem desses observadores e cronistas, o estudo também investiga o papel desempenhado pela Revista Illustrada. Frequentemente estigmatizados no Ocidente, os chineses eram retratados de forma estereotipada, variando de exóticos a dependentes de ópio, bárbaros e até preguiçosos. No Brasil, essa representação entrava em conflito com o ideal de civilização e progresso, cujo paradigma era europeu, branco, católico e civilizado. No contexto dos estudos pós-coloniais de Edward Said em Orientalismo, é evidenciada a relação de poder que hierarquiza as culturas, destacando o Oriente como irracional e o Ocidente como racional e virtuoso.
Territorialidades em (trans)formação: vilas e cidades nos primeiros tempos da Assembleia Legislativa Mineira (1835-1843)
Esta pesquisa observou que o advento do Regresso se refletiu nos debates sobre criação de vilas em Minas Gerais, revelando a imbricada relação entre surtos de autonomia municipal e acirramento da tensão partidária, que culminou na revolta de 1842. A proposta se insere na perspectiva teórica que enfatiza o papel do Poder Legislativo e das elites regionais no funcionamento da política imperial. Com o Ato Adicional de 1834, tais elites representadas nas recém-criadas Assembleias Provinciais passaram a ter o poder de decidir sobre a divisão territorial. A análise de debates parlamentares e leis votadas no período revelou, de maneira inédita, a conexão entre o processo de criação de vilas e a política imperial em seus diferentes níveis. Com efeito, a intensa descentralização político-administrativa observada em Minas Gerais em pleno alvorecer do Regresso evidenciou que o binômio centralização/descentralização não explica a complexidade da política do período.
A Zona da Mata central: produção rural e comércio com o Norte Fluminense na primeira metade do século XIX
Nos primeiros anos do século XIX, a abertura de uma estrada entre a parte central da Zona da Mata de Minas Gerais e a cidade de Campos dos Goytacazes atuou como catalisador do processo de ocupação das terras por ela atravessadas. Do mesmo modo, assistiu-se ao incremento do comércio entre as duas áreas, sinalizando para a formação de um espaço econômico particular, em grande medida correspondente à bacia hidrográfica do rio Pomba. Este artigo tem por objetivo analisar a produção rural e a circulação de mercadorias nessa região ao longo das primeiras décadas do século XIX com base nos dados dos dízimos e de importação e exportação pelo registro da Barra do Pomba, bem como questionar a validade do conceito de espaço econômico para o período posterior ao declínio da atividade mineradora.
Parliamentary Speeches, Political Economy, and the Corn Laws (1839-1846)
Debates in the British House of Commons between 1839 and 1946 revealed four distinct positions on the controversial Corn Laws. The Radicals, led by Richard Cobden, fought for overall free trade. The moderate Whigs, headed by Lord John Russell, leaned toward a fixed duty on imported corn. The Conservative Peelites, rallied behind Robert Peel, supported the prevailing sliding-scale system, while the landed Tories, who coalesced around Lord George Bentinck, wished protection all around. This article analyzes how the principles of political economy got entangled with political considerations in the speeches delivered by the leaders of each parliamentary faction. It concludes by highlighting the crucial role of political economy, especially the free trade doctrine, along with material evidence and historical precedent, as the key concurring factors in the repeal of the Corn Laws in 1846.
